O abuso e a violência contra a criança e o adolescente têm, em geral, como principais autores os próprios agentes domésticos – pai biológico, padrasto, tio ou avô. E o espaço físico onde comumente acontece o crime é a casa da família da vítima. “Trata-se de um espaço visto como de total segurança pelo agressor, onde não há nenhum tipo de monitoramento que possa identifica-lo com autor do crime”. A declaração é do o psicólogo e psicanalista, Gustavo Pestana. Atual coordenador de abordagem social da população em situação de rua de Ilhéus, Pestana reitera que a violência é, antes de tudo, uma violação dos direitos humanos que se manifesta sob diversas formas. E destaca pelo menos três delas: física, abuso sexual e psicológico.
Em Ilhéus, estão sendo acompanhados 94 casos de violência sexual tendo como vítimas crianças e adolescentes. O trabalho de acompanhamento dos casos é feito por especialistas do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS). Deste total já foi possível identificar que 21 delas foram vítimas do próprio pai, 16 do padrasto, 24 de amigos da família, 17 parentes e apenas um caso está relacionado à mãe da vítima. As demais ocorrências estão sob análise.
Esta realidade foi apresentada hoje, durante todo o dia, na Câmara de Vereadores de Ilhéus, com a realização da Audiência Pública que abriu a Semana Municipal de Proteção à Criança e ao Adolescente e de Combate ao Abuso e a Exploração Sexual Infanto-Juvenil. O encontro foi uma iniciativa do vereador Gurita (PSD). O evento reuniu autoridades e especialistas que cobraram, planejaram e fortaleceram políticas públicas e estimularam atitudes de enfrentamento à violência sexual infanto-juvenil no município.
Rede forte
A advogada Ana Luiza Oliveira, que atua no CREAS, destaca que o abuso sexual vem junto com a violência física e psicológica. Mas alerta: apenas uma entidade atuando isoladamente não consegue resolver o problema da criança e do adolescente. “De nada adianta a rede fornecer o serviço se esses órgãos não estiveram conectados”, assegura. Outro aspecto destacado pela advogada é a necessidade de não descredibilizar as narrativas feitas pelas vítimas. “Às vezes a mãe não consegue acreditar que o pai ou padrasto é capaz de cometer tal ato”, revelou.
Na abertura do evento, o presidente do Comitê Municipal de combate a Pedofilia e membro da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, vereador Gurita (PSD), destacou que a sociedade não pode fechar os olhos nem cruzar os braços para esse tipo de crime e deve continuar fortalecendo a rede de proteção para que as políticas públicas continuem sendo implantadas e ampliadas. O secretário municipal de Desenvolvimento Social, Rubenilton Silva, elogiou a iniciativa da Câmara em realizar a Audiência Pública, demonstrando a preocupação com a causa.
“É um braço a mais que fortalece nossa luta”, destacou Rubenilton. Advogado, mestre em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente e professor de Direito Administrativo, o secretário lembrou que a sua pasta carrega a responsabilidade de visitar as famílias e de até promover abordagem social. Ele lembrou que recentemente 12 entidades sociais que prestam serviços públicos participaram do processo seletivo do Conselho Municipal da Criança e do Adolescente para obter recursos e poder executar projetos sociais com crianças e adolescentes da cidade. “Esse edital era o que Ilhéus esperava. Esse é um projeto importante na construção de mais políticas públicas”, afirmou.
Crime
Representando o programa de prevenção à exploração sexual de criança e adolescente do Projeto Porto Sul, a advogada Elienete Olímpia Gomes, disse que crimes de pedofilia devem ser denunciados e que, para isso, já há importantes ferramentas, a exemplo do Disk 100 e do Ministério Público, que devem ser informados mediante qualquer suspeita. “Qualquer ato sexual praticado com crianças menores de 14 anos, não importa se tem ou não consentimento, será constituído como crime de estupro de vulnerável previsto no Código Penal Brasileiro”, acentua Flávia Amaro da Silveira Duvall, Defensora Pública do Estado da Bahia em Ilhéus.
Em viagem, o prefeito de Ilhéus, Mário Alexandre, gravou vídeo destacando a importância deste debate e o fortalecimento de toda a rede de proteção para aplicação de políticas públicas inovadoras em defesa da causa tão importante. Para a advogada Liane Cruz, membro da Comissão das Mulheres da OAB, a violência sexual não é apenas um crime físico. “Um simples olhar, um simples toque, uma exposição de foto ou vídeo que para a gente pode ser bobo, para elas é uma invasão”, revela. E questiona: “Se há lei e há pena, por que estes crimes continuam acontecendo?”. Segundo a advogada, os criminosos não têm medo e a única forma de interromper este ciclo é levando informação para as crianças e as pessoas que integram a rede de proteção.
É pior do que já se mostra
Titular da Vara da Infância e da Juventude da Comarca de Ilhéus, a juíza Sandra Magali Mendonça, lembra que no Brasil há algo muito preocupante chamado subnotificação. Segundo estatísticas apenas 10% dos casos de violência sexual contra criança e adolescente chegam às autoridades para a devida apuração. A juíza revela que 92% de crianças e adolescente vítimas de abuso sexual são meninas negras e 80% delas, vivenciam casos de violação por abuso sexual. De acordo com a magistrada, no período da pandemia a situação se tornou ainda muito mais grave.
“Nem temos como avaliar a fundo esses abusos no momento. As crianças não estão indo mais para a escola porque, querendo ou não, era um local estratégico para identificar essas denúncias”, lamenta. A juíza Sandra Magali defendeu mais políticas públicas de proteção ao menor e ao adolescente, mais conscientização e trabalho para apagar marcas de uma história de civilização preconceituosa, violadora e opressora. “Precisamos trabalhar na prevenção contra o abuso, poder esclarecer as crianças e adolescentes, explicar para as mães como romper essa barreira machista de achar que homem é assim mesmo, é a natureza do homem”, disse.
Rede poderosa e estruturada
A promotora Maria Amélia Sampaio, do MP Bahia, lembrou que a exploração infantil é uma rede estruturada que visa o lucro, pois é o terceiro comércio mais rentável do mundo, atrás do comércio ilegal de armas e do tráfico de drogas. “O Brasil está em terceiro lugar de consumo de pornografia infantil”, informou, acrescentando que é importante lembrar que esta violência também acontece de maneira virtual, “naquele mesmo computador que a criança assiste aula remota”. A promotora aconselhou que o computador usado pela criança não fique em um quarto escondido, mas, sim, em uma sala acessível aos adultos, para poderem passar e olhar o que está sendo exibido na tela.
Atual presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, Charles Santos afirmou que na hora do concreto, e não do abstrato, a rede de apoio que tanto é destacada nos debates “precisa existir”, já que hoje ela apresenta-se ineficaz. “É triste perceber que essa rede só existe porque está na lei e não por ser uma necessidade do cidadão”, protestou. De acordo com Charles, a dificuldade do conselho é enorme para funcionar. “Falta desde combustível para o Conselho Tutelar circular na cidade”, exemplificou.
Proposições
Durante o evento algumas proposições foram aprovadas pelos participantes, a exemplo da formação do Comitê de Proteção à Criança à Criança e ao Adolescente e de Combate à Exploração ao Abuso Sexual Infanto-Juvenil. Outra medida reivindicada é a revitalização do comitê, instalação junto ao governo do Estado da delegacia especializada de crime contra criança e adolescente e a criação de Grupo de Trabalho para elaboração do Plano Municipal. Esses Grupos de trabalhos são embasados nos seis eixos propostos pelo Plano Nacional de Enfrentamento de violência sexual infanto-juvenil.
Além da Audiência Pública, serão realizadas ações de conscientização e panfletagem em diversas regiões da cidade. Na terça, será em frente ao Palácio Teodolindo Ferreira, sede do Poder Legislativo de Ilhéus. Quarta, no CRAS do bairro Nossa Senhora da Vitória. Na quinta, será a vez do CRAS do Teotônio Vilela. Sexta, na praça Santa Rita, no bairro da Conquista e, sábado, na Central, de Abastecimento do Malhado. As iniciativas acontecem sempre às 8 horas da manhã.