Os funcionários de uma pequena confecção de roupas íntimas em Jardim de Piranhas, município da região do Seridó no Rio Grande do Norte, se preparavam para iniciar mais um dia de trabalho, em uma manhã de julho, quando receberam um pedido do dono da fábrica: gravar um vídeo declarando voto num dos candidatos à Prefeitura da cidade. “Tá fechado com quem? Qual prefeito?”, pergunta o empresário com o celular em mãos. Sentado em frente à máquina de costura, o empregado responde o nome do candidato apoiado pelo chefe e diz que “vai até adesivar” seu equipamento de trabalho.
As gravações com os funcionários da fábrica de cuecas foram parar no Ministério Público do Trabalho (MPT) — que viu no episódio mais um caso de assédio eleitoral. Levantamento do órgão mostra que o número de denúncias do tipo neste ano já supera o das últimas eleições no mesmo período, com 153 registros relacionados a empresas e órgãos públicos do país. A esta altura, em 2022, haviam sido somente 11 — o segundo turno da eleição presidencial, contudo, elevou o número para 3.606 denúncias naquele ano.
O assédio eleitoral ocorre quando patrões pressionam empregados a votar em determinado candidato, ameaçam-nos com a perda do emprego caso alguém não seja eleito ou prometem benefícios em troca de votos. Até 2022, eram atos classificados como assédio moral — o que impede a comparação com disputas municipais anteriores.
Primeiro acordo
Para evitar uma punição, o dono da confecção potiguar que gravou a declaração de voto dos funcionários assinou no último dia 23 um Termo de Compromisso de Ajuste de Conduta (TAC), o primeiro do tipo firmado neste ano. O empresário alegou que tudo não passou de uma “brincadeira”, mas aceitou o acordo, no qual se comprometeu, entre outras obrigações, a não mais constranger os empregados a votar em seus candidatos e a publicar em suas redes sociais uma retratação, sob pena de multa de R$ 10 mil.
O fato de haver registros em 24 estados indicam que a prática está disseminada. No interior de São Paulo, um escritório de contabilidade de Jundiaí, a 56 quilômetros da capital, é investigado sob suspeita de obrigar funcionários a adesivar seus carros com propaganda de um candidato à prefeitura. A cerca de 60 quilômetros dali, em Paulínia, uma associação de classe entrou na mira das autoridades após cobrar de funcionários doações para a campanha de um candidato da cidade, além de pressioná-los a transferirem seu título de eleitor para o município.
Já em São José do Rio Preto, a 440 quilômetros da capital, o MPT apura a responsabilidade de uma metalúrgica após a visita de um candidato à sede da empresa e a distribuição de santinhos aos funcionários.
Mudança de entendimento
Na avaliação do procurador-geral do Trabalho, José Lima Ramos Pereira, a tendência neste ano é de mais denúncias também no setor público, com a pulverização dos interesses pelas prefeituras e maior proximidade entre candidatos e eleitores.
“A possibilidade é muito grande de chegar um prefeito, um secretário, um vereador e dizer: vai todo mundo lá agora na praça assistir ao discurso do candidato tal. Isso, de certa forma, sempre existiu e já era assédio, só que as pessoas não percebiam ou davam importância”.
A Prefeitura de São Paulo, sob a gestão de Ricardo Nunes (MDB), candidato à reeleição, está na mira dos procuradores. Um inquérito civil foi aberto em agosto após o MPT constatar indícios de assédio eleitoral. De acordo com uma denúncia, integrantes da administração enviavam mensagens de textos a subordinados que ocupavam cargos comissionados cobrando a participação deles em reuniões políticas. Também perguntavam se participariam de eventos de campanha de Nunes e até se aceitariam colocar propaganda do prefeito em seus carros.
A Prefeitura de São Paulo afirmou, em nota, que o posicionamento eleitoral é livre, que eventuais ocorrências serão analisadas e possíveis correções aplicadas em caso de descumprimento.
Episódios semelhantes também foram registrados em outras cidades. Em Mandirituba, na Região Metropolitana de Curitiba (PR), procuradores apuram se funcionários de um órgão público da cidade foram coagidos a tirar férias durante o período das eleições para que façam campanha em prol do candidato da chefia. O MPT não informou de qual repartição se trata sob o argumento de não atrapalhar a investigação.
Já no Amazonas, além da capital, há procedimentos abertos para apurar suspeitas de assédio eleitoral nas cidades de Envira, Itapiranga e Parintins. Em um dos casos, relatos levados a procuradores indicam servidores pressionados para votar no candidato da situação, sob o risco de perderem seus cargos.
Em Minas Gerais, os agentes públicos tentaram até se blindar de uma investigação pedindo para não serem denunciados. Servidores de uma prefeitura foram convidados a participar do lançamento de uma candidatura por meio do grupo de WhatsApp da repartição pública. Segundo o MPT mineiro, o convite alertava que os funcionários não deveriam usar uniformes nem levar o caso às autoridades.
O procurador Antônio Edílio Teixeira, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), compara o assédio eleitoral a uma espécie de “curral eleitoral moderno”. “Trata-se de uma coação eleitoral mais sutil, sem violência tão evidente, mas com o mesmo efeito de afetar a liberdade do voto”.
Campanhas
Após a explosão de denúncias no segundo turno de 2022, autoridades lançaram campanhas para coibir a prática neste ano. O Tribunal Superior do Trabalho (TST) passou a usar um robô que mapeia casos e avisa tribunais regionais.
“As instituições tiveram de ficar mais atentas. Nas últimas eleições, vimos práticas de assédio eleitoral documentadas pelos próprios assediadores nas redes sociais. Eles estavam se envaidecendo e divulgando para toda a sociedade o crime praticado”, afirmou o presidente do TST, Lélio Bentes Corrêa.
A maior parte dos casos que já chegaram à Justiça do Trabalho ainda é referente às eleições de 2022. Um deles se refere a uma ação civil pública movida contra a SLC Agrícola. Segundo o MPT, o dono da empresa de Santa Filomena (PI) convocou 34 dos 95 funcionários para trabalhar no dia do segundo turno da eleição, impedindo-os de votar. Além disso, os empregados relataram a oferta de R$ 500 para que votassem no então presidente Jair Bolsonaro. A empresa nega irregularidades na convocação extraordinária e diz que “veda qualquer prática de assédio”.
Em maio, numa decisão considerada um parâmetro, o TST confirmou decisão que obrigou a varejista Havan a indenizar um funcionário que fora obrigado, com outros colegas, a assistir a lives de seu proprietário, Luciano Hang, nas quais ele induzia voto em Bolsonaro em 2018. Em janeiro, a empresa havia sido condenada a pagar R$ 85 milhões por danos morais individuais e coletivos pelo mesmo motivo. A Havan não comentou o caso. Na época, a assessoria de Hang classificou a sentença de “descabida e ideológica”.
Informações do Jornal O Globo