Quem são nossos heróis ?


Por Julio Gomes

A ficha caiu quando assistia a um show de rap de Racionais MC. Um aluno do 3º ano me passou o CD como parte da apresentação de um trabalho sobre o negro e a escravidão no Brasil.

Conforme o aluno me falou, no CD havia uma parte intitulada Documentário, que versava sobre a escravidão. Embora muito ambientado na realidade de São Paulo do Século XIX, o material é de fato interessante, tanto pelas fotos dos cativos – esse privilégio de podermos ver como eram os rostos de nossos antepassados, e não ficarmos restritos à versão dos pintores – quanto pelo texto narrado em off pelos artistas da banda.

Assisti tudo. Pouco mais de uma hora de documentário, que não se deteve na escravidão, mas avançou pela República, falando das precaríssimas condições de vida dos descendentes dos escravos até a década de 1980, além de abordar aspectos ligados à cultura.

Após cumprir a obrigação de professor, fiquei livre para assistir ao Show contido no CD. Delícia. Sempre gostei da banda, desde jovem. Verdade que quando minhas filhas começaram a crescer, parei de ouvir Racionais em casa. Tinha muito palavrão e eu não queria dar mau exemplo. Mas continuei gostando – e elas também, porque muitas vezes as peguei ouvindo.

Ambientado em um cenário de favela, o grupo cantava alguns de seus melhores raps, quando percebi mais forte o apelo que toca de fato a juventude: Tendo o criminoso como primeira pessoa, falando de si e de seu mundo, o rap de Racionais acaba por colocá-lo como o modelo e protagonista principal da juventude negra, pobre e mestiça de nossas periferias. O cara!

Mesmo tendo a coragem de mostrar que a vida bandida é sem futuro, e colocando em suas músicas um criminoso que acaba sendo preso ou morto, o apelo mais forte é de exaltação ao crime. O criminoso pode ser covarde, viciado, estuprador, assassino, cruel, mas não é um bundão, não é um cara apagado que abaixou a cabeça diante do perigo – que ele mesmo busca.

Durante boa parte do Século XX o ideal de rebeldia e romantismo da juventude sempre foram os revolucionários de esquerda, dos quais Tche Guevara é o ícone, o exemplo mais bem acabado. Eram estes que largavam tudo – família, vida burguesa, status – e arriscavam a própria vida para buscar o sonho de um mundo melhor através de uma Revolução popular e socialista. Foi assim durante décadas.

Com a queda do Muro de Berlim e o esfacelamento da URSS, o sonho socialista sofreu um forte abalo. O caminho ficou escancarado para que o mercado fosse transformado em um Deus com razões, vontade e determinações próprias e inquestionáveis; e o individualismo exacerbado e egoísta que se instalou na geração que veio da década de 1990 em diante nunca mais nos deixou.

Hoje qualquer um que lute pelo bem comum é, até  prova em contrário, um tremendo idiota. Afinal, o que importa é  ter o melhor carro, as melhores roupas e frequentar os ambientes mais caros. Não há mais lugar para revolucionários!

Entretanto, a rebeldia e a ânsia de viver intensamente continuam palpitando no coração da juventude! Os jovens de hoje jamais iriam assaltar um banco para financiar uma luta política, como acontecia nos anos 60, mas muitos deles matariam até aos próprios pais para passar o resto da vida luxando na beira da piscina, como ocorreu no caso Richthofen.

Os valores estão todos centrados no eu. Não há  comunidade, há indivíduos. Os valores morais são coisas do passado e a única ética compatível com a modernidade é aquela que conduz ao lucro.

Para o jovem da periferia que, em regra não, tem condições de fazer esta análise, a figura rebelde do criminoso é mais do que suficiente para galvanizar seu ardor juvenil. Nada de morrer pelo coletivo, é melhor assaltar e trocar tiros com a polícia. Afinal, isto traz prestígio, respeito, mulheres e o principal – dá lucro, e muito, a depender do tipo de crime praticado.

Tragam um imenso troféu de idiota para nós! Porque todos nós – governos, escolas, empresas, instituições democráticas, partidos políticos, ONG’s, meios de comunicação – todos nós o merecemos, com louvor, pois permitimos que o criminoso passasse a ser o self made man, o modelo a ser seguido pelo jovem da periferia.

Tudo o que acontecer a partir daí, também será  culpa nossa.

Julio Cezar de Oliveira Gomes – Professor, graduado em História; e Advogado, graduado em Direito, ambos pela UESC – Universidade Estadual de Santa Cruz.